Num especial para a televisão, o jornalista Leonid Parfionov, conhecido por seus documentários, afirma que, antes de Gógol, nunca haviam servido tanta comida gostosa na literatura russa. Nas obras desse clássico da primeira metade do século XIX, a comida ocupa realmente lugar de destaque e ajuda, inclusive, a caracterizar os personagens. Mas não foi só através dele que a culinária russa chegou até nós. Ela está presente nas páginas de muitos outros autores.

Entre os russismos encontrados na versão eletrônica do dicionário Houaiss, encontramos dois pratos típicos - blini e borsch - e a soberana vodca (Foto: Lori / Legion Media)

Entre os russismos encontrados na versão eletrônica do dicionário Houaiss, encontramos dois pratos típicos – blini e borsch – e a soberana vodca (Foto: Lori / Legion Media)

Entre os russismos encontrados na versão eletrônica do dicionário Houaiss, encontramos dois pratos típicos e a soberana vodca:

  1. Blini – “crepe de origem russa, feito de farinhas diversas (trigo, trigo sarraceno, sêmola etc.), leite ou iogurte, ovos e fermento de pão”. Etimologia: russa
  2. Borsch – “sopa de beterraba típica da Europa oriental (Polônia, Rússia, Ucrânia etc), que pode conter também carnes e legumes, sendo geralmente servida com creme de leite”. Etimilogia: russa
  3. Vodca – “aguardente de cereal (centeio, cevada, arroz etc.)”. Etimologia: russa, diminutivo de voda, água.

Todos os três têm presença garantida nos originais da literatura russa. Na tradução, às vezes são usados os russismos dicionarizados, outras vezes se adotam termos brasileiros, de acordo com a preferência do tradutor e a orientação da editora. Nesse campo, a vodca reina solitária: sempre com o mesmo nome. Em Guerra e Paz, de Liev Tolstói: “Em dez minutos, a mesa ficou pronta, coberta de guardanapos. Sobre a mesa, havia vodca, um pequeno frasco de rum, pão branco, cordeiro assado e sal” (vol. 2, p. 2153, trad. de Rubens Figueiredo). Em Os demônios, de Dostoiévski: “Serviram o chá, havia salgadinhos e vodca em abundância; jogava-se em três mesas e os jovens, à espera do jantar começaram a dançar ao som do piano” (p. 56, trad. Paulo Bezerra)… Não é à toa que o governo russo entrou com o pedido de reconhecimento do termo vodca como marca nacional, assim como o Brasil fez com a cachaça.

Blini

Blini

Já a palavra blini aparece nas traduções ora exatamente assim, ora como panquecas. Em Os males do tabaco, de Tchekhov: “Resultado: tínhamos feito algumas panquecas a mais. O que acham que fizemos com elas? Primeiro minha mulher mandou guardá-las no porão, mas depois pensou melhor e disse: “Coma você mesmo essas panquecas, seu espantalho” (p. 161 de Os males do tabaco e outras peças, trad. Aurora Fornoni Bernardini). Em Crime e castigo, de Dostoiévski: “De iguarias, além do kutyá [nota: Alimento de arroz ou outro grão com mel ou passas, consumido nos funerais ou exéquias], havia uns três ou quatro pratos (aliás, blini [com nota: Tipo de panqueca russa”] também), todos da cozinha de Amália Ivánovna, e além disso foram preparados dois aparelhos de samovar para o chá e o ponche previstos para depois do almoço” (p. 389, trad. Paulo Bezerra).

Borsch

Borsch

E borche? Borche aparece de várias formas. Algumas vezes assim mesmo, outras como sopa de beterraba, outras como borsch… Por exemplo, em Pais e filhos, de Turguêniev: “Mais tarde, procurava Vassíli Ivánovitch e, com a face apoiada na mão, lhe dizia: – Meu bem, como vamos saber se Ieniucha quer sopa de repolho ou borche, no almoço?” (p. 275, trad. de Rubens Figueiredo). Ou em “Homem num estojo”, de Tchekhov: “Os camponeses ucranianos usam nomes diferentes para as frutas e fazem um borsch [com nota: Sopa típica], com beterraba e berinjela, ‘tão gostoso, tão gostoso, que é simplesmente um horror!’” (p. 288 de A dama do cachorrinho, trad. de Boris Schnaiderman).

Quando simplesmente transliterado do russo, como blini, borche e vodca, as bebidas e comidas russas chamam atenção pelo próprio nome, demonstrando serem tão específicas que faltava em português palavra capaz de expressar inteiramente o seu sentido. Por outro lado, existem termos da culinária russa que, embora não sejam traduzidos por um russismo, envolvem hábitos nacionais bem peculiares. Vejamos o caso do chá.

Como escreveu Serguei Roganov em matéria para a Gazeta Russa, o ritual russo de “consumo de chá se centra no samovar. Na hora de servi-lo, o utensílio é colocado no centro da mesa. Do seu lado, se coloca um bule em que se prepara uma infusão forte. Cada convidado despeja a quantidade de infusão desejada em sua xícara e adiciona a água quente do samovar.” Nada mais compreensível, portanto, do que usar a imagem das pessoas reunidas em torno do samovar para representar a vida em família: “— Aí está — disse eu —, um copo de chá, o samovar e o quebra-luz doméstico: coisas maravilhosas, em torno das quais nos reunimos” (“A propósito da ‘Sonata a Kreutzer’”, Nikolai Leskov, p. 177, trad. Denise Sales).

Ainda segundo Roganov, “o chá demasiadamente quente era tomado no pires. Hoje, poucos seguem essa tradição, mas as xícaras de chá continuam vindo acompanhadas dessas peças.” Aí temos de novo um bom esclarecimento, só que agora útil para a compreensão de um trecho da novela de Tchekhov Minha vida: “Eu acendi o samovar. Sobre um tapete, à frente do terraço da casa grande, tomamos chá, e o médico, de joelhos, tomava do pires e dizia que experimentava verdadeiro êxtase” (p. 36, trad. Denise Sales).

Comece a dar atenção ao cardápio da literatura russa e você vai descobrir muitas outras gostosuras. Boas leituras e bom apetite!

 

Fonte: Gazeta Russa