Quando publicou Untouchable, The Strange Life and Tragic Death of Michael Jackson, promovida como “a história definitiva” do astro norte-americano, o jornalista Randall Sullivan expôs sua crença em relação à vida sexual do rei do pop. Para Sullivan, ele teria morrido virgem, “em um estado especial de solidão grandemente responsável por torná-lo um artista singular e um ser humano muito infeliz”. O biógrafo escreveu que o nariz de Jackson se parecia com “um par de narinas cercadas por um aro de cartilagem murcha, enrugada e desbotada”. Foi o suficiente para que os fãs clamassem o boicote à biografia nas redes sociais. Temporariamente, a Amazon suspendeu a venda de Untouchable (Grove Press, 776 págs., US$ 35), a ser publicado pela Companhia das Letras neste ano. O livro de Sullivan, colaborador da revista Rolling Stone, foi cotado com uma de cinco estrelas possíveis (a nota mais baixa). Para a mídia norte-americana, o volume seria “prolixo”, “dispensável”.

Morto em junho de 2009, aos 50 anos, -Jackson ainda provoca reações emocionais extremas. “Uma das figuras mais enigmáticas dos últimos tempos”, de acordo com a crítica cultural Margo Jefferson, ele conseguiu com seu trabalho revolucionário e comportamento excêntrico dar combustível para admiradores e detratores. Em Para Entender Michael Jackson (Rocco, 124 págs., R$ 28), Jefferson diz que, desde meados dos 1980, quando o cantor atingiu o ápice, todos observaram mais seus hábitos aberrantes do que suas realizações artísticas.

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“Não dá para escapar da aura de excentricidade e da história do garoto extremamente talentoso, amado por todos, que se transformou em uma figura ambígua, meio criança, meio homem, da qual muitos têm medo, raiva, nojo”, diz Jefferson, ganhadora do Prêmio Pulitzer. Jackson, ela afirma, “desorientava as pessoas de diversas maneiras: com sua raça, androginia, sexualidade, roupas, cirurgias plásticas, gastos compulsivos, sua paternidade. Não se parecia com nenhum outro ser vivo sobre a face da Terra”.

No ensaio A Propósito de uma Criança Monstruosa, o filósofo francês Michel de Montaigne tratou da dificuldade de compreender a diferença. “Nós chamamos de contrário à natureza o que ocorre ao arrepio do costume.” A bizarrice desperta curiosidade, a face complementar do repúdio. Segundo Jefferson, o empresário Phineas T. Barnum (1810-1891) iniciou nos Estados Unidos a exploração comercial dessa atração pelo estranho. “Um modelo para Jackson, ele foi o mestre de cerimônias do entretenimento, capaz de transformar um efeito visual chocante em uma história de aventura.” Promotor de espetáculos circenses, Barnum “estabeleceu o padrão para a criação dos atuais programas de auditório na televisão norte-americana”.

Ele explorou apresentações de crianças, anões, irmãos siameses e negros, os quais comparou a macacos em performances durante a Guerra Civil Americana (1861-1865). Jackson presenteou seus empregados com uma das oito versões da -autobiografia de Barnum. Ele explicava o presente: “Eu quero que a minha carreira seja o maior show da Terra”. Ao apelidar seu rancho de Neverland, o rei do pop inspirou-se em Barnum, que batizou uma mansão de Iranistan, seguido por Elvis Presley com sua Graceland. Em Neverland (Terra do Nunca) vive Peter Pan, inventado por J.M. Barrie no início do século XX. Peter Pan, uma criança que não deseja se tornar adulto, e Edgar Allan Poe (1809-1849), autor de histórias de terror e suspense, foram os únicos personagens cogitados por Jackson para representar em filmes.

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Jefferson vê ironia na campanha dos fãs contra Untouchable. “O esforço para censurar a biografia e desacreditar Randall Sullivan é um retrocesso na reabilitação gradual de Jackson”, diz a crítica cultural e professora da Columbia University. “Essa atitude pode induzir à conclusão: ‘Ele ainda tem esses fãs malucos. Claro, era um maluco também’.” O resgate da reputação artística do rei do pop é recente. Iniciou-se com o documentário This Is It, que registra os ensaios para 50 shows em Londres entre julho de 2009 e março de 2010. -Jackson morreu três semanas antes da primeira apresentação. “This Is It relembrou seus dons musicais incomparáveis.”

Segundo o jornalista Bill Wyman, na revista The New Yorker, Jackson realizou a aspiração de muitos artistas ao cruzar fronteiras de mercado. “Ele conquistou uma popularidade e uma autonomia econômica nunca antes sonhadas por um artista negro”, escreveu. “Em meados dos anos 1980 era o maior astro negro da história ao evitar percepções convencionais de negritude.” Wyman afirma que o cantor, com sua voz infantil, aparência andrógina e pele cada vez mais branca, tornou literal o desejo de uma estética universal.

Desde os anos 1950, os brancos se apropriavam da música negra. A composição Tutti Frutti deu mais lucro interpretada por Pat Boone do que por Little Richard, um de seus autores. Jackson e seus quatro irmãos, os Jackson 5, almejavam grande audiência. Para isso contaram com Berry Gordy, fundador da Motown Records. Os artistas da gravadora de Detroit evitavam canções com conotações políticas ou sociais, “mais uma tentativa desavergonhada de atrair uma respeitabilidade burguesa”, segundo Jefferson. Contratados por Gordy em 1968, os Jackson 5 eram “sexualmente modernos e racialmente inofensivos”.

Em 1984, dois anos depois de seu lançamento, Thriller, o disco mais vendido da história, deixou o topo da parada de sucessos. Jackson saiu de moda no fim dos anos 1980 com a ascensão do hip-hop, gênero transformado em indústria bilionária, o único atualmente capaz de rivalizar com a hegemonia da country music nos EUA. Os rappers estabeleceram o fim do cruzamento de fronteiras. Eles não transigiram em questões raciais ou estéticas.

A primeira acusação de pedofilia contra Jackson ocorreu em 1993. Para evitar o julgamento, ele fez um acordo multimilionário com a família do menor Jordan -Chandler. Dali em diante, de acordo com Untouchable, o rei do pop manteve uma relação destrutiva com a indústria do entretenimento. “No começo, ele entendeu como usá-la. Depois, subestimou o poder dela”, explica Jefferson. Para a crítica cultural, o drama da ambiguidade racial e sexual presente na arte de Jackson reflete ao extremo as contradições da sociedade norte-americana. Ela cita como exemplo a controvérsia em relação à identidade do presidente Barack Obama. “Nós o chamamos de afro-americano, pois o consideramos negro. Mas ele é meio negro, meio branco. A nossa cultura não tem uma linguagem ou mentalidade para reconhecer nuances e lidar com elas como um fato cotidiano.”

 

Fonte: Carta Capital