Foto: Włodi/ Wikimedia Commons

Além de extensa obra poética, o polonês Czesław Miłosz (1911-2004) deixou romances, memórias, correspondência e ensaios. Entre estes últimos, destaca-se O testemunho da poesia – seis conferências sobre as aflições de nosso século, de 1983, publicado recentemente pela editora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A tradução, direta do polonês, foi confiada a Marcelo Paiva de Souza, autor também da introdução e das notas que acompanham a edição. Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Jagielloński, em Cracóvia, Polônia, Marcelo ensina literatura polonesa na UFPR. Experiente tradutor e estudioso da tradução, já transpôs, entre outras obras, versos de Miłosz para o português. Nesta entrevista, ele destaca a importância da publicação de O testemunho da poesia no Brasil e aponta as razões pelas quais a Polônia pode ser considerada uma terra de poetas, o país da poesia.

sobreCultura+: O que o levou a traduzir O testemunho da poesia?
Marcelo Paiva de Souza: Em uma disciplina sobre tradução que ofereci na UFPR, propus aos alunos traduzir as conferências proferidas por Czesław Miłosz na Universidade Harvard em 1981-1982, quando ocupava a Cátedra de Poesia Charles Eliot Norton. Eles aceitaram o desafio. Miłosz ensinava literatura eslava na Universidade de Berkeley havia muitos anos e podia ter escrito as conferências em inglês. Mas preferiu fazê-lo em polonês e depois as traduziu para o inglês. À medida que a versão do inglês para o português evoluía, discutíamos as soluções dadas pelos alunos e as opções feitas pelo próprio autor traduzindo-se para o inglês. Acertada a publicação com a editora da UFPR, traduzi então o livro do polonês. Um título importante da obra ensaística de Miłosz se incorporou assim à língua portuguesa. Antes, já havia trabalhado em um projeto de tradução de seus poemas com um colega da Universidade de Brasília [UnB], Henryk Siewierski. Agora, tratava-se de dar a conhecer o ensaísta. Ambos são fascinantes e fundamentais. Miłosz é um autor capital do século 20, que precisa existir em português.

Czesław Miłosz @ foto: MDCarchives

Que obras de Miłosz estão à disposição do leitor em português?
Em traduções brasileiras de primeira mão, há a antologia Quatro poetas poloneses, preparada por Henryk Siewierski e José Santiago Naud, com poemas de Miłosz, Tadeusz Różewicz, Wisława Szymborska e Zbigniew Herbert, possivelmente os quatro poetas da Polônia de maior envergadura no século 20. É uma edição bilíngue, publicada em 1994, com texto introdutório dos organizadores. Mais tarde saiu a antologia de poemas de Miłosz organizada por mim e Siewierski na coleção ‘Poetas do Mundo’, da Editora UnB. Há aí um número pequeno, mas representativo, de versos do autor, precedidos por um estudo introdutório nosso. Para a revista Poesia Sempre – Polônia, da Biblioteca Nacional, foram coligidos textos de Quatro poetas poloneses e da antologia da UnB. Em Portugal há uma antologia de versos de Miłosz e Szymborska publicada em 2004. No âmbito da prosa de ficção, a Nova Fronteira publicou o romance O vale dos demônios, à época em que Miłosz recebeu o Nobel de Literatura. É uma tradução (bem feita, aliás) da edição inglesa do livro. Recentemente a editora Novo Século começou a publicar, também de segunda mão, obras do autor, como Mente cativa, outro título essencial de sua ensaística. O português é uma língua para a qual Miłosz está pouco traduzido, se compararmos com outras línguas importantes. O que há em português de sua poesia e de seus ensaios é ínfimo.

Quais os principais temas tratados por Miłosz nas conferências?
Em síntese, trata-se de um diagnóstico da poesia moderna feito por um profundo conhecedor de literatura e um grande poeta da Europa centro-oriental, região do mundo que, segundo ele, permite um ponto de vista muito próprio para o exame do assunto. Para fundamentar sua visão crítica do estado da poesia naquela época, Miłosz recua ao que chama de “matriz” da grande poesia moderna ocidental, sobretudo a francesa, com figuras como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Em seguida, indica o roteiro de constituição do moderno na poesia da Polônia e esboça um instigante panorama da produção poética do século 20 no país. A proximidade cultural entre a França e a 03864_otestemunho_dapoesiaPolônia era enorme, e o francês foi durante muito tempo a segunda língua do letrado polonês. A moderna poesia polonesa se constitui haurindo dessa fonte, mas ganha especificidade em razão, sobretudo, dos revezes históricos que se abatem sobre o país, particularmente no século 20. Por fim, Miłosz expõe uma concepção pessoal de poesia. A obra permite, portanto, que o leitor conheça Miłosz e, guiado por seu olhar, reflita sobre a poesia moderna, particularmente a polonesa.

Qual o impacto das conferências após sua publicação?
A publicação do livro foi saudada de imediato. Naturalmente, pois as conferências vinham no embalo do Nobel concedido a Miłosz em 1980. Outro dado relevante é a sanção institucional da Cátedra de Poesia Charles Eliot Norton. Alguém nessa posição está de posse de um alto-falante de extraordinário poder. Além disso, a situação política da Polônia à época – o país estava sob lei marcial, imposta pelo regime pró-soviético – acaba impulsionando a divulgação do livro. A voz de um intelectual dissidente ganhava naquele contexto grande ressonância política. Veículos especializados estampam resenhas, jornais noticiam a publicação. Em suma, o mundo culto ocidental reconhece o valor da obra. No entanto, essa primeira fase de recepção do livro o atrela talvez de modo excessivo às circunstâncias históricas de seu lançamento. Miłosz apoiava os movimentos de contestação na Polônia, seus poemas eram lidos em praça pública nas manifestações do Solidariedade. No quadro de polarização ideológica de então, o que se discerne n’O testemunho da poesia é antes de tudo a voz de um opositor do comunismo. Mas as questões que a obra põe em pauta hoje são outras.

Miłosz se diz um antimoderno. Como interpretar essa posição?
Interpretá-la de modo desavisado é um erro. Ele não se considera antimoderno em sentido absoluto; é antimoderno ao se contrapor a certa tradição moderna que, a seu ver, levou, em meados do século 20, a um depauperamento do fazer poético. Essa tradição é a que deriva de Mallarmé, da poesia simbolista, e que tem ainda outro nome tutelar no domínio francês, Paul Valéry. Estamos falando de uma poesia que investe em procedimentos de linguagem de alto grau de hermetismo, de rarefação do sentido, em que o objeto verbal é tomado como coisa autônoma, quase como um sucedâneo da religião. Esse é o moderno a que Miłosz se opõe. Há um ensaio seu, ‘Contra a poesia incompreensível’, que, por conter críticas à chamada poesia pura, causou considerável escândalo nos meios literários. Esse é um tema de que Miłosz tratou repetidas vezes. Aí está o porquê de sua reverência ao poeta norte-americano Walt Whitman, dono de uma poesia generosa na escuta do mundo. Miłosz admira essa característica em Whitman e não a vê na tradição que vem de Mallarmé, do simbolismo, e chega ao século 20. A poesia, segundo Miłosz, é um fazer compromissado com o mundo; ela tem que dizer o mundo. Quando começa a dizer apenas a si mesma, ela definha, perde o sumo vital.

Marcelo Paiva de Souza @ foto: Rosangela Meger

Miłosz admirava também o poeta inglês William Blake, não?
Nesse caso, há outro aspecto a considerar: o fato de Miłosz ter estudado a fundo o sistema metafísico que Blake erigiu em seu universo poético, ao tratar, entre outros temas, do lugar de deserção a que o homem foi condenado em razão das conquistas da ciência, da erosão do edifício das crenças religiosas, da perda da substância metafísica na existência humana. Como pensador da modernidade, Miłosz também se ocupa dessa questão. Daí Blake ter-se transformado em referência intelectual chave para ele. Mas aqui a afinidade se dá menos em termos de fazer poético e mais na perspectiva da problemática subjacente à obra de Blake.

Qual a relação da poesia de Miłosz com a chamada literatura de testemunho?
Miłosz repudiaria o rótulo, e é interessante entender por quê. Primeiro é preciso definir literatura de testemunho. Os textos assim chamados são aqueles em que se exorcizam traumas históricos como o Holocausto ou a experiência nos gulags soviéticos. O italiano Primo Levi e o romeno Paul Celan, que trataram do Holocausto, são figuras capitais dessa vertente, assim como o russo Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag. Isso seria testemunho em sentido estrito, e muitos escritores poloneses têm lugar de destaque nesse filão. Mas pode-se pensar nessa noção de modo amplo, entendendo por ela toda manifestação literária que expõe algum tipo extremo de violência em dado momento histórico. Há uma tradição latino-americana de literatura de testemunho, que trata de situações de desigualdade, exclusão e arbítrio na região. Então, considerar Miłosz um autor de literatura testemunhal é reduzir a uma única cifra um universo poético de imensa riqueza.

” Considerar Miłosz um autor de literatura testemunhal é reduzir a uma única cifra um universo poético de imensa riqueza. “

No Ocidente há certa tendência a vê-lo como escritor engajado, anticomunista. Mas essa é uma visão perigosamente estereotipada, aplicada a vários outros autores de qualidade, que têm também uma obra multifacetada. Miłosz a recusa porque não quer ver um universo poético complexo reduzido a uma só dimensão, por importante que seja. Mas é possível vê-lo como autor-testemunha de um tempo bem determinado: nos poemas que elaboram a experiência da guerra. Alguns desses textos são excepcionais, sobretudo os que tratam da questão do antissemitismo na Polônia. ‘Um pobre cristão olha para o gueto’, de 1943, é exemplar. A cena descrita é de destruição. Depois, vem, cavando um túnel através de uma espécie de cova coletiva, a figura misteriosa de uma toupeira, descrita como guardião de vulto semelhante ao de um patriarca do Velho Testamento, em clara referência à cultura judaica. O sujeito poético – judeu do Novo Testamento – se inclui entre os cadáveres e diz sentir medo: “Ele me contará entre os ajudantes da morte:/os não circuncidados.” Podemos falar aqui de literatura de testemunho naquele nível de grandeza que encontramos em Primo Levi ou Paul Celan. Mas, em Miłosz, isso é apenas a pontinha de uma galáxia.

Como vê a concessão do Nobel a Miłosz?
Quando concedido, o prêmio investe-se de poderosa carga política. Mas não se pode perder de vista que o laureado tinha àquela altura extensa folha corrida de serviços prestados à literatura. Então, desse ponto de vista, a situação é clara. Naquela conjuntura, porém, o Nobel veio reforçar o coro dos descontentes com o regime comunista. Essa fogueira foi instantaneamente alimentada pela premiação. Contudo, por mais que o prêmio tenha sido um elemento importante na arena ideológica de então, é inadmissível achar que Miłosz o recebeu exclusivamente por essa razão. Não se poderia prestar maior desserviço a um poeta dessa grandeza do que submetê-lo à bitola de ‘escritor que combateu o comunismo’. Infelizmente o Nobel naquele momento induziu esse tipo de leitura.

” A força de sua poesia foi um fator essencial para manter a identidade étnica e o espírito nacional. “

Por que a Polônia é considerada uma terra de poetas, o país da poesia?
No campo das artes, o teatro também se destaca na Polônia. Para ficar só em dois nomes, cito Tadeusz Kantor e Jerzy Grotowski, figuras estelares da cena de vanguarda do século 20. Mas a riqueza da poesia polonesa é impressionante. Algo que talvez explique isso é o longo curso da tradição histórica do fazer poético polonês. No Renascimento, já havia um Jan Kochanowski, em pé de igualdade com os grandes poetas de seu tempo no mundo ocidental. Formou-se nos centros de saber humanístico da Itália e tinha profundo conhecimento de literaturas antigas. Escrevia em latim, mas produziu também em polonês. Já na formação da poesia polonesa inaugurou-se assim uma linhagem diante da qual cada novo praticante da arte do verso teria que lutar para manter o nível fixado por aquele pai fundador. Ao cabo de séculos, o resultado é um panorama poético de potência incomum. Outro dado significativo são as vicissitudes históricas. Perdendo a liberdade no fim do século 18, invadida por potências inimigas (os impérios russo, austro-húngaro e prussiano), a Polônia deixa de existir como Estado, mas persiste como nação. E a força de sua poesia foi um fator essencial para manter a identidade étnica e o espírito nacional. Recuperada a independência no início do século 20, pouco depois o país vive outro trauma: a Segunda Guerra. A poesia feita sob tais cataclismos será necessariamente diferenciada.

Por que o romance polonês ficou como que à sombra da poesia?
Razões históricas também ajudam a explicar isso. No século 19, período de enorme pujança do romance europeu, a Polônia estava sob rigorosa censura de invasores e enfrentava políticas de combate à nacionalidade. Isso comprometeu seriamente a criação de romances, cuja produção requer um aparato institucional complexo: no mínimo jornais, para que sejam publicados em folhetim, e editoras, para saírem como livro. Num quadro de opressão estrangeira, como o romance se desenvolveria? Com a poesia é diferente. Escrito o poema, ele está nas ruas. O que não significa que na prosa de ficção não haja obras de qualidade. Aliás, já temos algo dessa produção em boas traduções para o português. Henryk Siewierski, por exemplo, é responsável pela divulgação de Bruno Schulz no Brasil, um dos grandes nomes da narrativa polonesa do século 20. E há diversos outros. Agora, com um curso de Letras/Polonês na UFPR, quem sabe não tardem a entrar em circulação entre nós…

 

Fonte: Ciência Hoje