Sergipano, poeta, vegetariano e praticante de meditação. Este é o jurista que presidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) durante boa parte do julgamento histórico do caso mensalão.

Aposentado compulsoriamente por ter chegado aos 70 anos, o ex-ministro Carlos Ayres Britto diz se sentir honrado por ter sido membro do Judiciário — poder que defende como digno de orgulho do povo brasileiro.

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Ayres Britto, que esteve em Santa Catarina na quinta-feira para receber uma homenagem do Tribunal de Contas, garante que o STF e seus integrantes são amadurecidos para não se deixarem influenciar pelos holofotes da mídia.

Advoga que o Judiciário deve ser o mais transparente dos poderes e que, como guardião da Constituição Federal, não pode ter desvios “no atacado”.

A seguir, trechos da entrevista ao Diário Catarinense.

Diário CatarinenseO senhor estava na presidência durante boa parte do julgamento do mensalão. Considera o julgamento um divisor de águas no Brasil?
Carlos Ayres Britto — Não sei se posso qualificá-lo como um divisor de águas. Foi um julgamento diferenciado no sentido da heterodoxia do processo. O caso foi diferente de qualquer outro, por isso estou chamando de heterodoxo. Foram 40 réus no ponto de partida da acusação, réus bem situados na escala social, na chamada pirâmide social e política, empresarial. Uma imputação feita pelo Ministério Público de sete crimes teoricamente graves, 600 testemunhas, um processo com mais de 50 mil páginas. O Supremo teve que decidir durante os meses de agosto, setembro, outubro, novembro, ininterruptamente. Exigindo, portanto, esforço concentrado, absolutamente inédito. Nesse sentido foi um divisor de águas. Agora, vamos esperar o julgamento final dos embargos de declaração.

DCO senhor acha que o STF cumpriu seu papel de seguir à Constituição ou se rendeu a um apelo popular no caso do mensalão?
Ayres Britto —O Supremo é uma Casa madura, democrática, que sabe bem do seu papel de cumprimento irrestrito da constituição brasileira. O Supremo não corteja a opinião pública e não faz salamaleques para a imprensa. Cada ministro é responsável, maduro, equilibrado, e não corteja notoriedade. O julgamento foi técnico.

DCComo o senhor avalia os embates entre o relator, ministro Joaquim Barbosa, e o revisor, ministro Ricardo Lewandowski?
Ayres Britto — Houve momentos em que o debate resvalou para o campo do calor até excessivo, convenhamos. Mas, no fim, o senso de institucionalidade prevaleceu. No limite mesmo, as vaidades efluem, os personalismos ficam extremamente reduzidos e o compromisso com a instituição é que domina e termina dando as cartas.

DCComo o senhor vê as críticas do PT ao julgamento?
Ayres Britto — Adepto praticante que sou da liberdade de expressão, mais especificamente da liberdade de manifestação do pensamento, sou praticamente do respeito irrestrito a essa liberdade. Vejo as críticas com absoluta naturalidade. É um direito que as pessoas, os partidos, as associações, têm de se posicionar criticamente em face das decisões judiciais, inclusive do STF. Na minha opinião, o Supremo não agiu como tribunal de exceção. Agiu como deveria ter agido, imparcial, atento à prova dos autos e que atuou em clima de transparência, de liberdade para o chamado contraditório entre acusação e defesa, assim como o contraditório argumentativo entre os próprios ministros. Os votos foram todos tecnicamente fundamentados, explicitados à luz do dia. O Supremo trabalhou sob os holofotes porque as suas sessões são televisionadas e internetizadas. Mas esses holofotes foram apenas no sentido físico. No sentido psicológico, não. Ninguém se deixou se impressionar pelos holofotes da imprensa. Absolutamente. Os ministros são amadurecidos, curtidos na vida, experimentados, e sabem que a busca do marketing pessoal é uma grave ofensa ao princípio da impessoalidade. O Judiciário é competente, responsável, cumpridor do seu dever da imparcialidade, sobretudo em matéria penal.

DCQuando estava na corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon tratou de uma série de investigações contra magistrados. Como o senhor vê esse tipo de situação?
Ayres Britto — No atacado, acho que o Brasil tem todos os motivos para se orgulhar do seu Poder Judiciário. É um Judiciário atualizado, culto, tecnicamente capaz, competente, independente politicamente. Aqui e ali, portanto no varejo, pontualmente, há um ou outro magistrado que incorre em desvio de conduta, mas há órgãos do próprio Judiciário encarregados da apuração desses desvios e, para além disso, há o Conselho Nacional de Justiça que vela pelo cumprimento dos deveres disciplinares, administrativos, financeiros de todo o poder. Quando o CNJ pune um juiz, é o Judiciário cortando na carne, dando o bom exemplo.

DCNessa semana o conselheiro do CNJ Jefferson Kravchychyn falou em uma sessão que é muito difícil punir pessoas do Judiciário, especialmente de alto escalão. O senhor concorda?
Ayres Britto — O Judiciário cortou na própria carne, por exemplo, aposentando compulsoriamente um ministro. Quantos desembargadores já foram punidos disciplinarmente, sem falar juízes. E, por outro lado, estamos implantando uma cultura da apuração, de saneamento interno. E isso leva um pouquinho de tempo, mas as coisas estão andando.

DCCom relação à transparência, há uma discussão, especialmente depois da Lei de Acesso à Informação, sobre divulgação do salário dos servidores. Como vê isso?
Ayres Britto — Uma das minhas primeiras sessões administrativas como presidente do STF e do CNJ foi aplicar a Lei de Acesso à Informação em plenitude, a partir da liberação das folhas de pagamento dos servidores. E o CNJ recomendou a todo o poder que assim procedesse. O Judiciário não teme a transparência dos seus atos. Tem que ser o mais transparente dos poderes. A sociedade tem motivos quando cobra mais do Judiciário para que ele cumpra seus deveres e a sociedade tem todos os motivos para não perdoar quando ele se desvia. Quem se coloca como garantidor derradeiro da Constituição não pode incorrer, no atacado, em desvios de conduta.

DCA aposentadoria compulsória poderia aumentar para mais de 70 anos?
Ayres Britto — É um tema que amadureceu no sentido de que chegou a hora de repensar. Não tenho proposta. Mas chegou a hora de repensar essa idade limite dos 70 anos. Ainda se justifica? Ou com a elevação da idade média de vida da população já se pode alongar um pouco mais de 70 para 72, 75.

DCGostaria de ter ficado mais tempo?
Ayres Britto — Pessoalmente, me sentia em condições de prosseguir servindo ao meu país e me realizando como cidadão e como profissional de Direito. Mas sou muito de virar a página. Internalizei a ideia de que aos 70 anos sairia e saí sem dor, sem queixa, sem melancolia. É uma página que virei e já abri outra, outro tipo de trabalho que venho fazendo com o mesmo gosto e mesmo entusiasmo.

DCComo está a vida desde que o senhor saiu do STF e o que pretende fazer a partir de agora?
Ayres Britto — É uma vida tão intensa quanto a que tinha. Vivo fazendo conferências, escrevendo, voltei a trabalhar como profissional. Mas hoje disponho mais do meu tempo. Dito meu próprio ritmo e lá no STF, não. Tinha horários rígidos a cumprir, pessoas a atender. Ministro do Supremo é servidor, como todos os que se investem em cargo público. Então temos a obrigação de receber as partes, políticos, autoridades públicas e privadas, dirigentes de associações. Sempre cumpri muito bem esse dever da abertura de receber as pessoas que procuravam o presidente da Casa.

DCVolta a advogar?
Ayres Britto — Gosto dos pareceres jurídicos e gosto do magistério, conferências, bancas de doutorado, de mestrado. Gosto muito da vida acadêmica, da reflexão científica. Vou reeditar três livros jurídicos, estou escrevendo outro. Tenho um livro de poemas pronto. Minha vida continua dinâmica e muito bem preenchida. Não tenho queixas.

DCO senhor é adepto da meditação?
Ayres Britto — Todos os dias. Sou um meditante juramentado. A meditação ajuda o chamado quociente emocional, que é uma inteligência emocional. Você administra bem os momentos aflitivos, encara cada problema como desafio. Não entra em desespero, consulta seus próprios botões, ouve muito a voz da consciência, se entrega ao cosmos, a Deus, ao universo.

DCO que o senhor gosta de fazer nas suas horas de folga?
Ayres Britto — Tocar violão, cantar, ler. Leio sobretudo poesia. Estou muito bem com a vida, em paz.

DC — O senhor tem pretensões políticas?
Ayres Britto — Nenhuma.

 

Fonte: Diário Catarinense